Friday, July 11, 2008

Siga o Coelho Branco.


'Se eu tivesse um mundo só meu, ele seria feito só de absurdos. Nada seria o que é, pois tudo seria o que não é...e, ao contrário, o que é não seria...e o que não seria, seria. Não é?'




Somente agora consegui, finalmente, assistir ao filme Menina de Ouro, portanto, já fui carregada de uma carga externa opinativa de várias pessoas, mas que se resumem em uma frase: Choraram muito. Fui preparada psicologicamente para cenas melancólicas, trágicas, dramáticas, com uma trilha sonora intensa e carregada. Felizmente, não foi o que encontrei.
Afinal: "Qual o preço do seu sonho?" Foi a primeira frase em que pensei após ter reorganizado minhas idéias (e ter parado de chorar...). O sonho de nossa menina de ouro custou uma vida.
Certa vez, li o relato de uma mulher em que ela contava que, quando mais nova, seu sonho era ser bailarina. Apesar de já ter ultrapassado a idade considerada ideal para iniciar a dança, ela procurou a melhor escola de balé da cidade e fez o teste. O professor que a avaliava, ao final da apresentação, lhe disse: Minha filha, você jamais será uma bailarina na vida. Decepcionada, ela voltou para casa, chorou muito e viu que, realmente, ele tinha razão. Ela já não era mais tão nova e não era muito boa; simplesmente, decidiu largar tudo. Muito tempo depois, ela, já adulta e casada, reencontrou esse professor e contou do teste que ela havia feito e que ele tinha sido o responsável por ela ter desistido do maior sonho de sua vida. Ele apenas lhe falou: Se você fosse uma bailarina de verdade, jamais teria dado ouvido ao que eu disse.
É exatamente essa a temática trabalhada no filme Menina de Ouro; ao pedir que Eddie a treinasse para ser boxeadora, Maggie simplesmente o ouviu dizer que não treinava garotas. Ainda em uma segunda tentativa, ele disse que ela era muito velha, que o treinamento demorava muito, que jamais daria certo. Ela retrucou: "Então terei que trabalhar mais duro".
Eddie, hoje, representa nosso próprio mundo Pós-moderno. Após as promessas de evolução, de inovação, de conquistas e vitórias que o Iluminismo pregou, vemos que o século XX é o "Século da desilusão". Ao invés da tão sonhada tecnologia como forma de ampliar a qualidade de vida a toda a espécie, vemos que ela foi usada não para o progresso, mas para a ganância. A tecnologia nuclear que resultou em Hiroshima e Nagasaki; os aviões como uma inovação dos meios de transporte resultaram em caças aéreos e kamikases; o antropocentrismo e a valorização do homem levou ao individualismo e nacionalismo extremos que resultaram em intolerância e em 2 grandes Guerras Mundias.
Onde está Deus então? Deus está morto, assinado Nietzsche. Criemos então nossos próprios deuses, dizemos nós. Hoje, o homem pós-moderno é o cultuador da ciência e a torna praticamente incontestável; ele é criador e destruidor de seus próprios mitos e ídolos; ele se apega às coisas que possui, em uma vã tentativa de tentar preencher as lacunas deixadas pela ausência de Deus como verdade e resposta para todas as coisas. Nós somos seres ambíguos, confusos, não temos mais a certeza do porque estamos aqui ou para onde vamos depois. A volta dos valores antropocêntricos, da mesma forma que a religião, não trouxe as respostas procuradas da forma como esperávamos. Isso é claramente refletido na literatura; a característica principal dos autores pós-modernos é a perda da onisciência. Aquela certeza demonstrada pelo narrador ao escrever, aquela segurança que sentimos quando lemos livros mais antigos, no que tange às respostas que a personagem procura, não é mais passada de uma forma clara e objetiva. A personagem e nós mesmos é que vamos descobrindo juntos, ao longo de todo o livro entremeado de conflitos, dúvidas, perguntas e questionamentos, como podemos procurar as respostas. Na maioria das vezes, eles sequer são dadas, apenas aponta-se um caminho como direcionamento.
Uma forma de tentar amenizar essas dúvidas é como a medicina hoje tenta dar respostas para tudo. Ela procura catalogar e diagnosticar todas as doenças e neuroses oriundas da própria Pós-modernidade. A banalização de se tratar qualquer tristeza como depressão, qualquer euforia como Síndrome do Pânico são apenas exemplos de como o homem ainda possui esperanças de que a ciência possa resolver todos os problemas do mundo.
Quando assistimos a filmes como Menina de Ouro, começamos a ver uma crítica que vai bem direcionada a esse modo de vida passivo que temos hoje. Muitos de nós temos sonhos, vontades, desejos, mas preferimos nos acomodar em nosso conforto proporcionado pela tão avançada indústria tecnológica e, infelizmente, nos contentamos com o que já obtemos. O boxe, que é usado como pano de fundo da história atuada e dirigida por Clint Eastwood, representa a magia de se lutar além dos limites. Essa também é a magia da vida. Nosso mundo carece de ideologias, carece de sonhos, de esperanças. Tudo está vinculado, de alguma forma, às coisas materias, mas todos sabemos que elas são finitas e estão restritas à nossa vida terrena. Sonho é a idealização de um objetivo e a vida deveria ser nada mais que a procura e a luta por ele. Nossa visão, porém, se tornou excessivamente limitada. O consumismo exacerbado na forma como ele nos é proposto mostra o hoje como o essencial; a utilização do Carpe Diem como jogada publicitária. Compre compre compre. Aproveite o dia e, claro, seu dinheiro.
Uma outra questão trabalhada excepcionalmente bem no filme foi a desteologização das problemáticas. Podemos notar que, à sequência da conversa de Eddie com o padre sobre o pedido de Maggie de que Eddie aliviasse seu sofrimento, depois de ter sofrido um grave acidente na última luta e ter perdido todos os movimentos do corpo além de ter tido uma perna amputada, segue a conversa de Eddie ( o próprio Clint Eastwood) com Frank, brilhantemente atuado por Morgan Freeman. O padre nunca dá respostas satisfatórias sobre os conflitos de Eddie; ele procura desesperadamente por um sentido à sua vida. Sua filha o ignora e devolve suas cartas sem sequer abri-las, ele não consegue compreender determinadas passagens bíblicas, não sabe o que fazer com Maggie...O padre, porém, se resume a dizer que é um pecado e que ele afundaria completamente se cedesse ao pedido de Maggie sobre a eutanásia, que ele deixasse isso nas mãos de Deus. Eddie lhe fala: "Ela, porém, está pedindo a mim e não a Ele". Pela primeira vez, vemos a pose de durão de Eddie se desmanchar em lágrimas.
Logo depois, Eddie está em seu ginásio de boxe conversando com Frankie, que é um ex-lutador de boxe e que perdeu um olho na sua última luta motivo pelo qual Eddie não se perdoa. Frankie, muito mais do que um mero zelador do ginásio, representa a própria personificação da consciência de Eddie. Frankie foi rápido e direto com as palavras. Um fato interessante é que, nessa cena, Eddie sequer chega a comentar sobre o que o afligia tanto. Frankie diz que visitara Maggie de manhã e sua fala se resume em uma subtração da lei para que seja feita alguma justiça, ou seja, a "consciência" de Eddie diz que ele deve ir além dos limites de crenças e ensinamentos pessoais e acabar com todo o sofrimento da garota.
A princípio, ficamos meio chocados com essa possibilidade de Eddie efetuar uma eutanásia. A dúvida gira em torno de abrir mão da única pessoa que faz sentido na vida dele ou deixá-la existir de forma egoísta e contra a própria vontade dela; afinal, há a imposição de uma lei que vai além do direito que o ser humano possui sobre sua própria vida. É muito fácil dizer que, uma menina que lutou a vida inteira pelo seu sonho, agora vai desistir da própria vida, que tipo de lutadora é essa? É fácil falar isso quando estamos sadios, quando caminhamos, rimos, andamos, comemos, respiramos com nossos narizes...jamais poderemos entender o que se passou na cabeça de Maggie naquele momento, se a analisarmos sob nosso próprio ponto de vista. "Para ver muita coisa, é preciso despregar os olhos de si mesmo", já dizia o filósofo Nietzsche. Precisamos avaliar a situação sob a perspectiva e o olhar de Maggie para, somente assim, sermos capazes de entender suas razões. Eu disse entender, não necessariamente, aceitar.
Esse tem isso um dos maiores motivos de intolerância que se tem hoje, em todos os sentidos. Seja religiosa, política, social, étnica, cultural. Não somos capazes de perceber que, para vermos o que há do outro lado do espelho, precisamos poli-lo e, fazendo isso, estaremos ofuscando nossa própria imagem, citando um exemplo de Jostein Gaarder, em seu livro Através do espelho. O individualismo e o egocentrismo que norteiam nossa civilização ocidental hoje dificultam que consigamos perceber o outro com suas razões e motivos.
Maggie queria eternizar aquele coro MO CUISHLE que ainda ressoava em sua mente, expressão essa atribuída por Eddie à garota e que acabou se tornando uma espécie de nome artístico que as pessoas procunciamvae clamavam a cada vitória. Seu sofrimento era tamanho deitada naquela cama de hospital, completamente imovél e já sem uma perna, que ela sentia que esse coro ia ser diluído por tamanha tristeza e angústia. Ela nasceu lutando, como ela mesmo explica que seu pai lhe contara de como seu parto fora difícil, e queria morrer da mesma forma. Muitos consideram um suicídio uma forma de covardia. Tente suicidar pra ver se um covarde seria capaz de fazê-lo. Não nos interessa mais o que haverá depois que morrermos, mas parece que não pode ser pior do que está.
Maggie lutou por seu sonho até o fim; deu o máximo de si e, certamente, partiria com a certeza de um dever cumprido, de uma chance não desperdiçada. Chance? Será que ela teve uma chance ou será que nós as criamos? Não foi chance, mas sim, persistência. Chance é algo do acaso e a garota de ouro não recebeu nada por acaso. Tudo foi fruto de suor, determinação, esperança, sonho, ideologia...todos nós podemos ver o coelho branco. Cabe a nós segui-lo ou não. Para se chegar ao País das Maravilhas, a caminhada é longa, árdua. Às vezes, o coelho é mais rápido e você o perde de vista. Muitos se cansam e preferem desistir e voltar às suas casas, ofegantes demais que estão para serem capazes de prosseguir. Superar essa caminhada é o pré-requisito para se conhecer o mundo fantástico e desfrutar dele.
Alguns não alcançam o tão almejado objetivo. Nossa protagonista não ganhou um milhão de dólares. O título original do filme, porém, é "Million dollar baby". Isso sim é de cair o queixo. Projetamos todas as nossas espectativas em algo, ou melhor, em conseguir algo e só nos satisfazemos quando o alcançamos. Nós, porém, não vivemos para sempre. Que injustiça é, então, tantas pessoas morrerem no meio dessa perseguição por seus coelhos brancos e sequer terem tido a oportunidade de vislumbrar o País das Maravilhas! Aí é que está a questão mais bela do filme! Essa nossa corrida por seguirmos o coelho branco é que é a nossa vida! Não podemos acreditar que o mérito se encontra apenas com aqueles que realmente conseguem penetrar o mundo encantado e alcançar o que almejavam...o mérito está em sairmos de nossa passividade, sairmos de nosso total comodismo e nos dispormos a ir atrás de nosso coelho branco. Nossa vida, de fato, não irá começar a partir do momento que conquistarmos nosso objetivo...nossa vida começa quando nos levantamos e pensamos: Sim, eu quero.
O prestígio está no caminhar, muito mais do que no conquistar e é isso que nos torna heróis. A luta e a bravura mais até que a vitória; a iniciativa e a coragem, mais até que a concretização. É exatamente por isso que Maggie é a menina de um milhão de dólares. Não que ela tenha alcançado o prêmio, ela vislumbrou apenas os jardins do tão sonhado País das Maravilhas, mas, mesmo assim, ela tem conciência do quão longe chegou e não quer que nada destrua a imagem que ela tem, em sua mente, do mais sublime e encantador jardim que ela já presenciara; ela não quer deixar de ouvir o canto Mo Cuishle (as lágrimas que saem de seu rosto quando Eddie lhe diz o significado dessa expressão são indescritíveis; talvez, uma expressão de sinceridade, gratidão, ternura, carinho, admiração e realização mais harmônicas que já presenciei...o que nem seria necessário para uma expressão tão completa: "Minha querida, meu sangue"...). Ela sente-se realizada e feliz, mesmo não tendo ultrapassado as entradas do País das Maravilhas. E ela está certa, pois, como diz Nietzsche: "Felicidade é um caminho e não um destino".

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